25 outubro 2015

Sicario






O horror é imediato, chega-nos em fila descamuflada e mutilada. É o jugo dos cartéis de droga mexicanos, de que ouvimos falar de forma diluída e ocasional nas notícias.

Villeneuve filma a imensidão das paisagens, a multiplicidade dos carros em carreiro na fronteira, a aridez do horizonte, como espelho desta problemática. A praga que se espalha, disseminando morte e violência, cujo fim não se vislumbra.

"That's what happens when you cut a chicken's head off."

O plano é aparentemente simples. E progressivamente amoral, como descobrimos ao lado de Kate, numa composição tão destemida quanto frágil de Emily Blunt. Mal com mal se ataca, um mal menor para um bem maior. Magnificamente personificado por Benicio del Toro, numa interpretação que que faz do silêncio e do mistério os seus trunfos. 
Sicario constrói a sua intriga de forma inteligente, numa lógica livre do "preto e branco" dos bons e dos maus. É desafiante e nunca gratuito. Robusto e nunca condescendente. Por isso não deixo de ter um sentimento algo agridoce para com o seu final. Pareceu-me surpreendentemente redutor e não pensei que o filme fosse enveredar por essa vertente de "vendetta". Julgo que tenho um qualquer problema com os finais de Villeneuve, aconteceu-me o mesmo com "Enemy". 





Ainda assim, constitui apenas um pequeno percalço. Sicario afirma-se como um thriller sólido e desafiador, fortalecido pela exímia composição de del Toro, pela desoladora e bela fotografia e pela realização intrigante de Villeneuve. E sem dúvida pela desesperante constatação final: o horror mantém-se, a normalidade do dia-a-dia é apenas uma casualidade...


03 outubro 2015

As Mil e Uma Noites: Volume 1 - O Inquieto






Que posso eu escrever sobre "As Mil e Uma Noites - O Inquieto"? Aproprio-me das palavras do realizador: "Sinto-me burra e a abstracção faz-me vertigens." Que posso eu escrever? É difícil. Achei-o mirabolante e corrosivo, em forma e conteúdo. Complexo e de momentos sublimes. Ruína a cobrir o sonho, miséria abraçada ao amor, num retrato crítica mordaz e acutilante ao país despedaçado e inquieto. Inquieto da incerteza dos dias, inquieto do desalento, inquieto pela esperança, inquieto pela longevidade dos néscios que nos governam. Eu, como tantos outros, sou esse país. Venha "O Desolado"!


09 setembro 2015

Hannibal - Folie À Deux



A crítica que se segue contém spoilers!




"That’s all I ever wanted for you, Will. For both of us.

It’s beautiful.”


                      
The Wrath of the Lamb”. A ira do inocente. Ou o sacrifício do inocente? E poderemos falar verdadeiramente de inocência? Do desenho passou-se à concretização – Maybe this is my becoming. A comunhão consagrada ao negrume do luar. A sincronia dos corpos e das mentes, num pas-de-deux extático e fatal. O abismo nunca foi tão perturbadoramente belo e desolador.

10 junho 2015

Antipasto: a "joie de vivre" de um psicopata



Crítica com spoilers



Por Antipasto designa-se tradicionalmente o primeiro prato de uma refeição italiana formal. E não, não é apenas um conjuntinho de aperitivos para enganar a fome – esta assembleia de carnes fumadas, cogumelos, azeitonas, queijos e muito mais marca oficialmente, com pompa e circunstância, o início da refeição. Ai ai, mas por que raio vim parar a um blogue de culinária?! Como é que eu fiz isto?


Calma leitores, estais no sítio certo…mas esta introdução gastronómica surge como efectivamente necessária e justificada! É que Antipasto, o tão esperado regresso de “Hannibal”, pode inicialmente parecer deslocado, pode de facto parecer meramente um prelúdio ou uma distracção da questão principal que nos tem assombrado: o que aconteceu depois de Hannibal sair daquela casa manchada a sangue e chuva? Quem esperava sirenes de ambulância e os nomes dos sobreviventes pode ter-se sentido defraudado (eu senti-me algo desorientada, pelo menos) mas por muito pouco tempo, certamente. É que Antipasto fez jus ao seu nome e foi indubitavelmente um delicioso, hipnotizante, sumptuoso, tenso e sempre enigmático começo de temporada! Uma misteriosa e chique soirée em Paris que, marcada a sangue, nos conduz a Florença, berço do Renascimento. E haverá melhor lugar que este para albergar Hannibal, homem dos setes ofícios e artes, culto, inteligente, perfeccionista, maquiavélico e carismático? (sim, eu não me esqueci que ele é um psicopata/canibal/assassino em série mas não se lhe podem negar estas qualidades!). Pois é aí que o encontramos, luxuosamente instalado e belissimamente acompanhado pela não menos enigmática e atraente Drª Bedelia du Maurier, numa ligação tão interessante quanto perturbadora! Mas já lá iremos…





Antipasto centra-se exclusivamente nas interacções de Hannibal após Mizumono: a relação com Bedelia vai sendo justaposta com a relação com alguém do seu passado – que não, não é Will Graham, é nada mais nada menos que o Dr. Gideon, sob a forma de memória ou sonho. O famigerado Dr. Gideon, também ele um louco e um assassino, que, como já adivinhávamos da temporada anterior, sofreu um destino, se não inqualificável, no mínimo perturbadoramente aterrador, às mãos de Lecter. E assim surge, num passado a preto e branco, como jugo moral de Hannibal, como a vozinha na consciência que ele possuiria se não fosse, lá está, um autêntico psicopata! Cada minuto destas conversas é ouro, não só pelo seu teor (como se de um desvendar da psique se tratasse), como pela extraordinária composição de Eddie Izzard, que naquele tom cadenciado e sólido é ainda imponente e desafiador! O quão de força é ouvi-lo retorquir para Hannibal que espera o dia em que este estará na mesma posição que a sua? E tão retorcido se afigura agora o dito “somos o que comemos”? Que arrepiante cadeia alimentar… 





Que o diga Bedelia, a resguardar-se num regime de ostras, trufas brancas, nozes…ou como ela tão eloquentemente afirma: “coisas livres de um sistema nervoso central”…Mal ela sabia que esse era precisamente o conteúdo das refeições dadas aos porcos no Império Romano antes de serem abatidos…Esta cena foi verdadeiramente hilariante, com o hesitante engolir em seco de Bedelia e o regozijo inquisitivo de Hannibal! E regressa novamente a questão, uma das que nos intriga desde aquele alucinante e sangrento final de temporada: porque está Bedelia ao lado de Hannibal, porque voltou e agora o acompanha nesta fuga? É medo, do género, se não podes fugir junta-te a eles? É loucura partilhada? É curiosidade? Até Hannibal levanta a questão, naquele ameaçador e provocante “Are you observing or are you participating?”. Bedelia é, desde o início, uma das personagens mais intrigantes da série; não conhecemos o seu passado, não conhecemos as suas motivações. O mostrar do seu ataque (com o bónus de um cameo de Zachary Quinto) ofereceu-nos mais perguntas que respostas, quer quanto à sua personalidade quer quanto à extensão e profundidade do seu relacionamento com Hannibal. E quão sublime é Gillian Anderson na composição desta personagem? Infinitamente sublime! E intemporalmente bela e sofisticada, intermitentemente frágil e forte, ultimamente carismática! Bravo!


E quanto a Hannibal Lecter? Ora, ora, Hannibal está nas suas setes quintas, a alimentar o espírito e o corpo, numa busca idílica pela satisfação e pela perfeição! “You forgot ethics. You only care about esthetics now“, retorque Bedelia a Hannibal, numa daquelas suas provocações tensas. E talvez assim seja; luxuosamente instalado em Florença, Hannibal nunca cessa de jogar o jogo, de maquinar, de planear o seu bem-estar máximo, aproveitando e deturpando a beleza que existe no mundo, daí a “joie de vivre” a que me refiro no título. E se alguém se atravessa no seu caminho…bem, já o conhecemos suficientemente bem para adivinhar o que ele lhes reserva não é? E volto ao confronto entre Bedelia e Hannibal, no qual ela, entre o temor e a curiosidade, é forçada à constatação que o observar não existe, que o sangue da vítima que lhe mancha o rosto é prova da sua participação! E enfrentar o ar de completo prazer e superioridade de Hannibal face a tudo isto é não só incómodo, como nos faz balançar entre o desprezo e a admiração que possamos sentir por esta personagem! Um excelente trabalho de Madds Mikkelsen, que não destoa daquele a que já nos tinha habituado! 

Despeço-me com uma nota final para a opulenta e hipnotizante estética da série, que se omnipresente desde o seu início, é sempre digna de nota!





Antipasto é um regresso que podemos classificar como mais contemplativo e mais pausado, mas nem por um minuto menos tenso e intrigante. Permitiu explorar a relação entre Bedelia e Hannibal e até a sua própria psique, ainda que nos dando mais questões que respostas. Solidamente desenvolvido e interpretado, Antipasto marcou o ritmo para uma temporada que se afigura como deliciosa e perturbadoramente avassaladora!


01 junho 2015

Quinta Temporada de Game of Thrones - Série versus Livros (Parte 2)


E o sol brilha, e os passarinhos chilreiam, e hoje até é o Dia da Criança...haverá altura melhor para continuar a falar deste modelo tão tradicional e puro de conto de fadas que é "Game of Thrones"?






Vou então falar agora das personagens cujas tramas não foram alteradas e como a sua adaptação está a correr (relembro que esta análise só vai até ao sexto episódio desta temporada, por isso à data desta publicação é certo e seguro que novos desenvolvimentos já tenham ocorrido...mas após o final desta temporada irei fazer uma crítica mais global...so, do not fear!)


Mais uma vez, seguem-se SPOILERS!!!


26 maio 2015

Quinta Temporada de Game of Thrones - Série versus Livros (Parte 1)


Este não vai ser um texto aborrecido e cego a queixar-me da série não ter seguido exactamente, sequencialmente, ao pormenor, os livros de A Song of Ice and Fire e de como isso os estragou em definitivo e irreversivelmente. Sim, a série não seguiu exactamente os livros. Por isso se chama ADAPTAÇÃO. O que funciona em página pode não funcionar no ecrã. E isso é flagrante principalmente em A Dance With Dragons, não tanto em A Feast for Crow, já que o último livro é mais pausado e menos pródigo em momentos WTF. Claro que esta conversa toda não invalida que eu possa não concordar com as escolhas feitas pelos criadores da série e é exactamente esse o motivo deste texto: uma análise comparativa entre o que já nos foi mostrado na quinta temporada (até ao sexto episódio) e os livros correspondentes. Vou começar pelas personagens/tramas que sofreram alterações e passo já a explicar que para mim isto significa, por exemplo, personagens que foram excluídas ou personagens cujo rumo/motivações sofreram uma volta de 180º, e não pequenas mudanças nos seus enredos mas que conduzem exactamente ao mesmo fim. Depois passarei às outras personagens. Vamos lá a isto?


Escusado será dizer que o texto que se segue contém spoilers dos livros e da série!!!






24 maio 2015

The Age of Adaline






Foi a inacessibilidade de Adaline que me cativou. O porte intemporal, o charme erudito, a classe omnipresente. Inacessível não pela natureza do seu carácter mas pela contrariedade da sua condição. Literalmente uma “old soul” presa num corpo jovem, eternamente presa nas malhas do tempo, sem destino, sem evolução. E o filme é inicialmente bem-sucedido a transmitir esse distanciamento, simultaneamente atraente e intrigante. A caracterização física de Adaline é nisso parte fundamental, e Blake Lively assume os figurinos com paixão e atitude; é aquele dito de que “a mulher é que faz o vestido, e não o contrário”, sabem?






E depois o amor entra em cena. E apesar de alguns clichés, a história até é desenvolvida com uma certa graça e encanto! Confesso que a “bookworm” em mim ficou derretida com a entrega das “flores”…oh well! 


Até que chega a segunda parte. E momentos que pediam mais envolvimento, mais confronto, mais emoção, passam quase de mansinho, de forma muito linear. A revelação tem muito menos impacto na dinâmica da relação (amorosa e familiar) do que seria esperado, descambando quase de imediato num artifício narrativo previsível e precipitado, somente para compor o final feliz. 





The Age of Adaline” é, no seu âmago, agridoce. Gostei da construção da personagem principal, cativante na sua incapacidade de pertença, mas o desenvolvimento final da narrativa sentiu-se apressado e forçado, retirando-lhe a invulgaridade que podia muito bem possuir.


25 abril 2015

Poemarma






E hoje que se celebram os 41 anos do 25 de Abril e 40 anos das primeiras eleições livres para a Assembleia Constituinte, partilho um poema de Manuel Alegre, um clamar à luta e à intervenção, à liberdade e ao sonho: "Poemarma", publicado em "Praça da Canção", de 1967.


Um pequeno (mas quase profético!) excerto:


"Que o poema seja microfone e fale
uma noite destas de repente às três e tal
para que a lua estoire e o sono estale
e a gente acorde finalmente em Portugal."




Aqui na voz de Mário Viegas, no disco Operário em Construção.






22 abril 2015

Momentos (XXVII)








E do último filme verdadeiramente "burtoniano" de Burton, recordo uma das minhas cenas preferidas: 


o segmento "A Little Priest"!



O vídeo e texto que se seguem contêm spoilers!







O momento em que o desejo de vingança expresso por Sweeney Todd é complementado e "elevado" a um serviço maior pelo sentido prático, maquiavelismo e devoção de Mrs, Lovett! Uma crítica social e moral, de costumes, que encerra tanto de mordaz como de delirante, na indefinição inevitável e consciente dos papéis de juíz, de agressor, de carrasco!


19 abril 2015

Focus








Um arraçado de filme de vigaristas com comédia romântica que oscila indecisivamente entre surpreendentes virtudes e (perdoáveis) defeitos. Ora vejamos.

O segmento de vigarista, não sendo assombroso, foi construído de forma eficaz, com apelativos truques e um ritmo rápido e contagiante, servindo o seu propósito de iludir e depois espantar o espectador. Por sua vez, o par protagonista demonstra química q.b.: Will Smith consegue ser cativante e divertido enquanto Margot Robbie exala naturalmente toda a franqueza e sensualidade que a sua personagem exige. Ou seja, até aqui temos um filme descomprometido e cool, capaz de agarrar o espectador.



Contudo, a transição para o romance não me convenceu por completo, principalmente a partir da parte em Buenos Aires. A história soou a algo forçado, esticando os limites do credível e das coincidências, o que até prejudicou, na minha opinião, a construção do golpe. 

Concluindo, “Focus” é entusiasmante, principalmente enquanto “con-movie”, mas acaba por ceder a alguns clichés românticos que lhe retiram fulgor.


16 abril 2015

Momentos (XXVI)








Mulberry Street... and Worth... Cross and Orange... and Little Water. Each of the Five Points is a finger. 

When I close my hand it becomes a fist. And, if I wish, I can turn it against you.


(Bill "The Butcher" - Gangs of New York)




12 abril 2015

O som das Highlands (Outlander - genérico)



Há genéricos que nos deixam logo curiosos e enfeitiçados. Este foi sem dúvida um deles, para mim. 

"Outlander", adaptado dos livros de Diana Gabaldon, conta a história de Claire Randall, que, de lua de mel na Escócia em 1945, se vê transportada para o século XVIII, tempos conturbados de tensão entre a Escócia e a Inglaterra. Ainda estou nos primeiros episódios mas do que vi até agora gostei bastante: a estrutura narrativa é cativante e as personagens estão a ser bem desenvolvidas e posso dizer que me aguçou a curiosidade para ler os livros.


Voltando ao genérico, envolve-nos de imediato uma sensação de misticismo, de beleza e de paixão e sentimo-nos igualmente transportados para esta época e lugar, através das imagens entre os séculos XX e XVIII intercaladas com o som tão belo e distinto das gaitas-de-fole.

A música utilizada é uma adaptação de "The Skye Boat Song", uma canção folk escocesa muito famosa e histórica, relacionada com a revolta jacobita que lutava pela independência da Escócia. Neste caso, a série utilizou o poema "Sing Me A Song Of A Lad That Is Gone", de Robert Louis Stevenson, como letra para a música. Assim, temos um eficaz e soberbo paralelo entre a parte histórica a que a série se refere e o estado de espírito da personagem principal.






Sing me a song of a lad that is gone,
Say, could that lad be I?
Merry of soul he sailed on a day 
Over the sea to Skye.

Mull was astern, Rum on the port,
Eigg on the starboard bow;
Glory of youth glowed in his soul; 
Where is that glory now?

Sing me a song of a lad that is gone,
Say, could that lad be I?
Merry of soul he sailed on a day
Over the sea to Skye.

Give me again all that was there,
Give me the sun that shone!
Give me the eyes, give me the soul,
Give me the lad that's gone!

Sing me a song of a lad that is gone,
Say, could that lad be I?
Merry of soul he sailed on a day
Over the sea to Skye.

Billow and breeze, islands and seas,
Mountains of rain and sun,
All that was good, all that was fair,
All that was me is gone. 


(Sing Me A Song Of A Lad That Is Gone, de Robert Louis Stevenson)


03 abril 2015

Manoel de Oliveira







Numa tarde encoberta a passear pelas margens do Douro, vejo ao longe um grande grupo de pessoas, câmaras de filmar, uma tenda branca e uns mergulhadores. Aproximo-me, olhando em volta, tento descobrir de que se trata. Até que vejo um livro, grande e antigo, a boiar nas águas revoltas. Capa pesada, ornada e bela. A equipa tenta resgatá-lo. As filmagens já terão certamente terminado naquele dia.


Ontem voltei a ver esse livro. Flutuava imponente no ecrã da minha televisão. Pertencia à curta-metragem “O Velho do Restelo”, de Manoel de Oliveira, misto de estilização e maquinação teatral e filosófica, e belo ainda assim. Não vi Manoel de Oliveira nesse dia (nem sabia que era um filme dele), quiçá estivesse abrigado na tenda ou já ocupado noutro lado, sempre enérgico e a trabalhar. Pois era efectivamente essa uma das imagens que tinha (tínhamos) dele, a vontade e determinação em nunca parar, em nunca ceder ao tempo, em continuar a fazer o que o apaixonava. Mesmo nem sempre compreendendo totalmente ou por vezes nem apreciando o (ainda pouco) que conhecia da sua obra, essa tenacidade e paixão eram exactamente o motivo principal porque o admirava. 


Fico a pensar no livro, sábio e resiliente sob a força das águas, à imagem do seu realizador. O realizador que afirmava “continuo a ser um aprendiz do cinema” e que “o cinema é um fantasma da realidade”. O realizador que queria filmar até morrer. Conseguiu-o. Manoel de Oliveira. Uma vida em pleno e um legado que será eterno.


31 março 2015

Rashomon






A chuva lança-se em bátegas pesadas e ameaçadoras. Ainda assim, não consegue lavar a inquietação e o tumulto interior de dois homens, testemunhas num julgamento sobre um peculiar e violento crime. Abrigados sob o portão da cidade, partilham com um terceiro a confusão e indeterminação de um relato moldável e intrigante, cuja veracidade oscila por entre a vaidade e a honra dos seus intervenientes.

Rashomon, acutilante conto moral sob o curioso disfarce de “o que aconteceu, quem fez o quê?”. Uma virtuosa história de manipulação, uma imperdoável análise ao âmago do Homem: qual é a natureza e extensão do seu sentido de honra e capacidade de responsabilização? E oferece-nos resposta? A chuva continua a tombar. Em Rashomon não se descobre a verdade, antes se ouve e assiste a várias verdades, a várias versões do mesmo acontecimento. A verdade pode não ser bonita, mas pode certamente ser embelezada. Para esconder a vergonha, a traição, a maldade. Para esconder as imperfeições que ameaçam a própria identidade. 

Dono de uma soberba realização e de impressionantes interpretações, Rashomon é sem dúvida filosoficamente denso e inquestionavelmente belo.


28 março 2015

The Imitation Game









Uma história extraordinária contada de forma meramente normal e quase desinspirada. A formalidade na realização de Morten Tyldum até terá sido bem-intencionada, contudo, ao invés de enaltecer a narrativa, apenas lhe retira fulgor e lhe acrescenta automatismo. Cumberbatch e Knightley são cativantes e competentes, a banda-sonora apaixonadamente adequada, mas isso não é suficiente para quebrar a monotonia e formalismo deste jogo...


22 março 2015

(As) Simetrias [19]







Por entre o génio absoluto de Peter Sellers, 

criador de três memoráveis caricaturas, acutilantes e provocadoras!

"Sir, I have a plan!"







 "Gentlemen, you can't fight in here! This is the War Room."

President Merkin Muffley








"Do I look all rancid and clotted? You look at me, Jack. Eh? Look, eh? And I drink a lot of water, you know. I'm what you might call a water man, Jack - that's what I am. And I can swear to you, my boy, swear to you, that there's nothing wrong with my bodily fluids. Not a thing, Jackie."

Group Capt. Lionel Mandrake








"Mr. President, it is not only possible, it is essential. That is the whole idea of this machine, you know. Deterrence is the art of producing in the mind of the enemy... the FEAR to attack. 
And so, because of the automated and irrevocable decision-making process which 
rules out human meddling, the Doomsday machine is terrifying 
and simple to understand... and completely credible and convincing."

Dr. Strangelove





(Peter Sellers em "Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb")





16 março 2015

Fifty Shades of Grey






Ora vamos lá ao que interessa…

I don’t make love. I fuck. Hard.” Se estão à espera disto, vão até outras paragens.

Quanto ao resto, o filme melhora alguns aspectos do livro. Primeiro, e muito importante, tiraram aquela referência extremamente pirosa e constrangedora à “inner godess”! Aleluia! Depois, a Anna do filme acaba por ser um pouco mais assertiva que a descrita no livro ao mesmo tempo que atenuaram a faceta mais obsessiva e controladora (fora do quarto) de Christian Grey. Por último, está presente mais humor do que seria de esperar, nomeadamente nas reacções de Anna a toda a situação, que deixam de ser de simples constrangimento para se tornarem engraçadas e até espirituosas. Ou seja, destes pormenores até gostei!

Agora enquanto filme, tal como o livro, não esperem nada de elaborado ou profundo: o primeiro volume é pouco mais que a descrição (em má escrita) de uma série de encontros sexuais e se no filme investiram mais na romantização da relação ao invés do sexo, certo é que se trata apenas disso, sem desenvolvimento das personagens ou uma história complexa. Achei que existia química sim entre Dakota Johnson e Jamie Dornan mas o argumento não lhes permite fazerem mais que aquilo que mostraram. Não se fazem omoletes sem ovos, não é? 

Concluindo, acaba por ser muito brando e "certinho" para quem se publicitou como tão provocador e sensual. Achei que funcionou como uma boa adaptação do livro e por isso não desgostei, embora enquanto filme em nome próprio seja demasiado medíocre.




And now for your momento of Zen:”















12 março 2015

As Curtas do Fantasporto 2015



Durante a minha "estadia" pelo Fantas, tive oportunidade de assistir a estas curta-metragens, passadas antes dos filmes de cada sessão. Aqui fica a minha opinião sobre elas:


Dog 




De inspiração asiática, com porrada à bruta e à séria a gravitar por entre os temas de amor e redenção. Interessante mas de concretização mediana.


Les Pécheresses





A mulher e a violência e humilhação que sempre lhe foram infligidas ao longo dos séculos, a partir de 3 mulheres diferentes: Eva, do Génesis, a mulher do Barba Azul e uma anónima dançarina criada pelo realizador, 3 histórias, 3 símbolos, 1 mensagem. Uma curta de animação visualmente bela e curiosa, ao serviço de uma temática bastante negra e desoladora que nos faz reflectir sobre a condição da mulher.



El Bosque Negro 





Uma curta ali do país vizinho, que tanto pode querer homenagear como gozar com os contos de fadas e toda a herança de coragem, heroísmo e cavalheirismo! Bem apresentada e desenvolvida, revela-se como uma história sombria que põe em causa o habitual final feliz! 


Odd One Out 





No final das sessões, já mal me conseguia lembrar sobre o que era esta curta. Basicamente achei-a aborrecida e longa (!) e pouco mais posso dizer, não conseguiu captar minimamente a minha atenção. 



Rien Ne Va Plus 





Um bom exemplo de concretização, numa curta irónica e quase perversa, que começa idílica e termina grave, rindo-se daqueles que acham que podem escapar à (má) sorte!


10 março 2015

Liza, The Fox Fairy (Fantasporto 2015)







Liza, a doce enfermeira que procura o amor verdadeiro. O fantasma de um cantor pop japonês que a assombra. A Hungria dos anos 70, que aqui não é comunista: ouve-se o seu líder a discursar sobre o caminho para o capitalismo e o amor é procurado por entre uma dentada e outra no hambúrguer do Meek Burger (get it?). Uma sucessão de pretendentes cómicos e desajeitados que caem que nem tordos. Uns pozinhos de cultura japonesa e outros de cultura nórdica. Querem trama mais hilariante e extravagante que esta?

Assim se desenrola "Liza, The Fox Fairy", em tom exagerado, delirante e cómico, surpreendendo-nos com a sua vivacidade e encantando-nos com a sua história! Uma potencial receita para o desastre é afinal uma aposta mais que ganha: sim, há muito nonsense mas tudo encaixa de forma inteligente e divertida e despretensiosa neste inefável comédia de amor e de costumes! As personagens e o trabalho dos seus actores são inegavelmente cativantes e contagiantes! A música e a fotografia contribuem sobremaneira para o ambiente pretendido! É impossível não ter sempre um sorriso nos lábios, entre sonoras gargalhadas!

Károly Ujj Mészáros, o realizador, até "pediu desculpa", durante a apresentação, por ter trazido ao Fantas um filme sem sustos nem arrepios...Acho que as vívidas palmas no final do filme manifestaram bem a opinião do público, mas deixo aqui por escrito: senhor Mészáros, ainda bem que nos trouxe esta sua gloriosa, irreverente e hilariante criação!



09 março 2015

Awaiting (Fantasporto 2015)








Não nos apanha totalmente de surpresa, é claro logo de início que qualquer coisa de estranho, no mínimo, se passa naquela casa. O isolamento forçado, o ar agreste e fechado do pai e a atitude alienada e inconsequente da filha  são indícios que o melhor é fugir dali a sete pés o quanto antes. Mas quando nos apanha, tal como ele Jake é apanhado, atinge-nos com uma tal rara e avassaladora intensidade que nos deixa sem fôlego!





"Awaiting" é exactamente tudo o que um filme deste género deve ser: tenso, vibrante, duro, surpreendente, violento, intrigante e arrasador. Tem um vilão, Morris (o pai), inquietante e convincente, assustador, enigmático e puro psicopata. A sua vítima, Jake, possui a dose certa de confiança, resistência e vulnerabilidade. E depois temos o terceiro vértice deste perturbador triângulo: a filha, Lauren, afastada de tudo e de todos, ingénua e perturbada, para tornar esta mistura ainda mais devastadora. O jogo de perseguição, de fuga e tortura, é sufocante, inteligente, incerto e sangrento, deixando-nos em constante e extático sobressalto, e tudo termina num horror e incredulidade sonantes e angustiantes! Quem sorrirá por último? A loucura estará certamente a seu lado, piscando-nos o olho, enquanto tentamos afastá-la...



06 março 2015

Children's Show (Fantasporto 2015)






A realidade é por vezes mais terrível que a ficção. É o que "Children's Show" nos mostra, frontal e duro, sem hesitações ou pudores. Nas Filipinas, a pobreza e a miséria forçam crianças entre os 10 e os 15 anos a participar em torneios ilegais de "streetfighting". O que "Children's Show" faz é relatar-nos essa realidade, sob o olhar já demasiado cru e experiente de dois irmãos. Assistimos às suas lutas, dentro e fora do ringue, que a miséria parece nunca vir só e eles têm também que enfrentar a negligência e violência vindas do pai. Felizmente, nem tudo é mau e se eles se têm um ao outro, também têm a avó e esta relação oferece-nos uma das mais, ainda que rara, enternecedora cena. Até a "escuridão" se sobrepôr novamente...

"Children's Show" constituiu uma agradável surpresa. Não conhecia o cinema filipino e sem dúvida que esta foi uma amostra cativante, séria e notável!



The Perfect Husband (Fantasporto 2015)








Durante a primeira metade do filme fiquei sem saber muito bom o que iria sair dali. Um casal em crise espera recuperar a relação que antes tinham indo passar um fim de semana fora no campo. A mulher é quem está claramente mais perturbada e lançam-se sugestões de que algo paranormal possa andar à solta. Depois de um susto e de um encontro com as autoridades, tudo parece melhorar e chega a vez do romance. E depois, subitamente, o descalabro ocorre e temos um psicopata à solta! E ao que parece, também a "xunguice", mas daquela mesmo má! Os protagonistas são ambos uns canastrões, sem um pingo de credibilidade, e as situações são construídas de forma tão ridícula e inconcebível que até dói! Desde a mulher que ao defender-se do ataque consegue parar o marido e foge mas deixa o machado com que ele a estava a atacar convenientemente aos seus pés até às expressões maradas de suposto psicopata com que o marido nos brinda, enfim, é um sem fim do piorio! E depois lá chega o twist final, ao qual concedo alguma graça, mas que depois de uma história tão mal construída, parece apenas um artifício fácil para colar o filme...o que, na minha opinião, definitivamente não resultou.


05 março 2015

III (Fantasporto 2015)






Fiquei como que perdida na beleza etérea de um sonho vago e intermitente. É que se há coisa de que este "III" se pode gabar é do seu deslumbramento visual, de uma fotografia sumptuosa e galante que gravita entre esperança e desespero, tranquilidade e temor, sonho e pesadelo. A música que a acompanha é um encaixe perfeito, sem dúvida.

Pena é que "III" não possua a consistência e profundidade narrativas que suportem a sua interessante premissa e que se aliem graciosamente à sua pujança visual. Assim como está, regista-se apenas como uma sucessão de belíssimas e quase hipnóticas imagens sem um fio condutor que lhes confira verdadeiro significado.